Não é um pensamento absurdo — nem brilhante — questionar a multiplicidade dos personagens de As Ondas. Isto é, seis pessoas que são, de facto, apenas uma. Bernard reflecte sobre isso no final. Ainda assim, sobra Percival, o personagem sem voz. Penso em voz alta: Percival, amado por todos durante a infância e a juventude, morre quando o sol atinge o zénite. Então, talvez Percival, idealizado na juventude, seja a face que não se completou no personagem-seis-personagens adulto. Morre por isso. Durante o resto do romance, os personagens relembram-no ocasionalmente, como o adulto que pensa «para onde foi o homem que eu sonhava ser quando crescesse?».
Archive for Fevereiro, 2010

Quem tem medo de Virginia Woolf? #5
25 de Fevereiro de 2010– Hampton Court. É aqui o nosso ponto de encontro. Reparem nas chaminés vermelhas, nas ameias quadradas de Hampton Court. O tom de voz que utilizo para pronunciar «Hampton Court» serve para provar que sou um indivíduo de meia-idade. Há dez, quinze anos atrás, teria dito «Hampton Court?», ou seja, na interrogativa, perguntando-me o que lá poderia encontrar. Lagos, labirintos? Ou, como que antecipa algo: «O que me irá acontecer uma vez lá chegado? Quem irei encontrar?». Agora, Hampton Court, Hampton Court, as palavras chocam contra um gongo suspenso no ar (o qual fiz os possíveis por limpar através de meia dúzia de telefonemas e postais) e ecoam em anéis de som, estrondosos, vibrantes. (p. 157 – 158)
Woolf, Virginia
1931 The Waves; ed. ut.: As Ondas, Lisboa, Público, 2002.

Quem tem medo de Virginia Woolf? #4
24 de Fevereiro de 2010Na badana da edição que tenho de As Ondas, de Virginia Woolf (colecção Mil Folhas do Público), um texto não assinado termina assim: «A mestria de Woolf está em ter chegado a esses fugidios cantos do espírito humano. Como as ondas».
Sobre este pequeno pedaço de brilhantismo só me ocorre dizer que a sua mestria está em ter chegado a esses fugidios cantos da banalidade crítica. Como as ondas.

Quem tem medo de Virginia Woolf? #3
24 de Fevereiro de 2010No entanto, eu só existo quando o canalizador, o comerciante de cavalos, ou seja lá quem for, diz qualquer coisa que me desperta para a vida. E então que o fumo que se eleva da minha frase se torna maravilhoso, subindo e descendo, flutuando e envolvendo as lagostas vermelhas e os frutos amarelos, tornando-os maravilhosos. Todavia, reparem só na falsidade desta frase, construída de evasivas e velhas mentiras. É por isso que o meu carácter é em grande parte constituído pelos estímulos que me são fornecidos pelos outros, não me pertencendo do mesmo modo que a vossa personalidade vos pertence. Existe uma linha fatal, um qualquer veio de prata, irregular e sem rumo certo, a enfraquecê-la. (p. 99)
Woolf, Virginia
1931 The Waves; ed. ut.: As Ondas, Lisboa, Público, 2002.
Quem sou eu? Ou antes, quem sou eu? Como se define um eu sem que haja um tu? Será que a identidade só existe no diálogo?

Assinei hoje
24 de Fevereiro de 2010o papel que diz, em traços largos, que pela primeira vez na vida (espero que não única) me vão pagar para fazer aquilo que gosto. Parabéns para mim e para o atraso de cinco meses.

Quintas de Leitura #100
23 de Fevereiro de 2010É nesta quinta-feira. Como não podia deixar de ser. No Teatro do Campo Alegre. Com a apresentação das belíssimas Adriana Faria e Teresa Coutinho. Com muita poesia. Com muita arte. Construída pelo João Gesta. Leica Virgem. A não perder. http://quintasdeleitura.blogspot.com/

Quem tem medo de Virginia Woolf? #2
23 de Fevereiro de 2010Contudo, não quero ser o primeiro a assumir o fardo de possuir uma vida individual. Eu, desde segunda-feira (o dia em que ela me aceitou), via-me confrontado com um profundo sentimento de identidade, de tal forma que não podia ver a escova de dentes no copo sem dizer “A minha escova de dentes”, não desejo agora outra coisa senão abrir as mãos e deixar cair todos os meus haveres, limitar-me a ficar na rua sem participar, a observar os autocarros, sem sentir quaisquer desejos; sem invejas; apenas com aquilo a que se poderia chamar uma curiosidade ilimitada a respeito do destino humano, e isto se a minha mente ainda tivesse limites. Contudo, já nada possui. Cheguei; fui aceite. Nada peço em troca. (p. 83)
Woolf, Virginia
1931 The Waves; ed. ut.: As Ondas, Lisboa, Público, 2002.
Adolescência: a luta pela identidade que nos permite desaparecer na multidão.

Quem tem medo de Virginia Woolf?
23 de Fevereiro de 2010Eu tinha, admito-o. Quando era mais novo, talvez por saber que wolf era inglês para lobo e por ouvir insistentemente este título, comecei a desenvolver uma aversão à autora. Mais tarde, no início da adolescência, como muitos dos meus medos infantis, este transformou-se em fascínio e, a partir daí, comecei a estar particularmente consciente de tudo o que rodeava Virginia Woolf. Mais tarde ainda, quando comecei a voltar-me para a literatura e a ler quem era Virginia Woolf, o medo voltou. Há uns dias atrás, larguei o medo. O fascínio voltou.
Sim, tudo é propício. Estou no estado de espírito adequado. Posso escrever de um só fôlego a carta que tantas vezes comecei. Acabei de entrar; deixei cair o chapéu e a bengala; estou a escrever a primeira coisa que me veio à cabeça sem sequer me ter dado ao trabalho de endireitar o papel. Irá transformar-se num esboço brilhante, a respeito do qual ela deverá pensar ter sido escrito sem uma pausa, sem uma emenda. (p. 57)
Woolf, Virginia
1931 The Waves; ed. ut.: As Ondas, Lisboa, Público, 2002.

Whatever works
22 de Fevereiro de 2010«If you’re one of those idiots who needs to feel good, go get yourself a foot massage».
O que é estranho, é que este é um dos feel good movies of the year. A ideia de que podemos encontrar felicidade na disfuncionalidade que funciona é bem mais apaziguadora que um ideal romântico de perfeição. For me, I’d rather have whatever works.

Da glorificação vermelha
19 de Fevereiro de 2010Ontem estive no TNSJ a ver A Mãe, de Bertolt Brecht, encenada por Joaquim Benite. Confesso, a encenação deixou-me desiludido (se a comparar, por exemplo, com Tambores na Noite, encenada por Nuno Carinhas) mas a interpretação de Teresa Gafeira arrebatou-me. Ela foi, de facto, «a mãe». Para além do personagem óbvio, é de notar a transformação de Pavlov que, inegavelmente, troca de posições com a sua mãe, antes de morrer. Francamente contraditório, e também por isso interessantíssimo, era Nicolai, o professor, que representava a intelectualidade que temia e se apaixonava pelo movimento. «Como se escreve operário? E Luta de Classes»?

10 narradores pouco confiáveis
17 de Fevereiro de 2010Numa selecção de Henry Sutton aqui. Devo confessar que também tenho um fraquinho pelos narradores mentirosos.

«a rose / By any other name» #6
17 de Fevereiro de 2010Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa que o homem dispõe para se orientar no mundo. (p. 465)
ECO, Umberto
1980, Il nome della rosa; ed. ut.: O Nome da Rosa, Lisboa, Público, 2002.
Elogio da indecisão: se o signo é a única coisa que guia o homem, e se o signo é sempre referencial, como é que o homem não há-de estar permanentemente perdido? O desfecho de O Nome da Rosa não é surpreendente, nem teria muito a ganhar com isso. É antes uma homenagem à aleatoriedade. Eco subverteu o código [do género policial] que guiou grande parte do romance, sem o subverter. Brilhante.

O problema de ser Leal #2
17 de Fevereiro de 2010O tempo do lugar
Era uma cidade
densa, povoada.Sem um minuto quadrado.
LEAL, Filipa
«O Tempo do lugar» in A Cidade Líquida e Outras Texturas, Porto, Deriva, 2006, p.33.

«a rose / By any other name» #5
15 de Fevereiro de 2010Ainda não terminei O Nome da Rosa (estou em modo de leitura ultra-lento) mas suspeito que Guilherme de Occam – amigo de Guilherme de Baskerville – e a sua navalha vão estar envolvidos no desfecho.

Prometo que é a última vez que falo do IJUP
15 de Fevereiro de 2010Só queria lembrar que na quinta-feira, 18 de Fevereiro, não vou ser o único a falar. No mesmo dia e sessão que eu vai estar a minha querida amiga Inês Evangelista Marques, com a comunicação «Espelhos de mulheres: a imagem feminina nas cantigas de escárnio e maldizer de Joan de Guilhade». Um trabalho muito mais rigoroso e interessante que o meu, como facilmente confirmam. Também no dia anterior, 17 de Fevereiro pelas 14.30, o meu bravo companheiro Pedro Lopes Almeida vai apresentar uma comunicação intitulada «Presenças Ausentes: Belmonte, o esquecimento partilhado como tradução e narrativa», a não perder. O programa completo pode ser consultado aqui (p. 2 para as sessões de Filosofia de dia 17, p. 7 para as sessões de Literatura de dia 18).

«a rose / By any other name» #4
13 de Fevereiro de 2010Dois momentos brilhantes, um pela sua comicidade, outra pelo seu realismo cruel: quando os monges tentam chegar a acordo sobre a pobreza de Cristo, a discussão exalta-se de tal modo que desatam ao soco; a manipulação da linguagem pelo inquisidor e o terror inspirado no acusado pela tortura combinaram para que se encontrasse uma confissão que satisfizesse os juízes – ser falsa ou verdadeira é questão de perspectiva (vide a citação anterior).

Pedro salvando Inês
13 de Fevereiro de 2010Pedro foi, em simultâneo, carrasco e salvador de Inês. Deixo de lado os encantamentos macabros da história. Pedro podia ter salvo Inês da morte: pelo clima político, podia adivinhar o destino que Afonso IV preparava. Alguns diriam que, se realmente a amasse, Pedro a teria deixado viver. Consideram assim que o Príncipe não tinha mais que uma doentia paixão carnal pela dama espanhola e que, mais tarde, se tornou obsessão e psicose. Por outro lado há os que acreditam na ingenuidade de Pedro. E há um terceiro grupo que sugere que Pedro não foi ingénuo e que, dando-lhe a morte, salvou Inês na imortalidade. De facto, quantas amantes de reis portugueses sobreviveram ao tempo na boca do povo? Três hipóteses, todas com o seu quê de romântico (a loucura, a inocência, a imortalidade). A fusão das três narrativas resulta em algo de brilhante: a salvação de Inês do limbo do esquecimento e a tentativa eterna da redenção de Pedro.
Suscitado por isto.