26 de Julho de 2010
1. Na crítica de Nabokov existe uma certa tendência normativa que colide profundamente com o meu pensamento. Exemplo disso encontra-se no pequeno posfácio a Anna Karénina que a edição da Relógio D’Água (2006) inclui. Logo no primeiro parágrafo, Nabokov pretende estabelecer uma tabela dos maiores escritores russos de sempre:
Tolstoi é o maior escritor russo de ficção em prosa. Deixando de lado os seus precursores Púchkin e Lermontov, talvez se possam ordenar os grandes artistas russos da prosa da seguinte forma: em primeiro Tolstoi; em segundo Gogol; em terceiro Tchékov; e em quarto Turgueniev. É como dar notas aos trabalhos dos alunos, e não há dúvida de que Dostoievski e Saltykov estão lá fora à porta do meu gabinete para discutir a má nota que tiveram. (p.835)
Não consigo compreender este tipo de classificação linear: em primeiro lugar porque, se falamos da obra completa de um autor, nenhuma pode ser tão uniforme que se possa distanciar das outras; em segundo lugar porque me parece que, a ser possível classificar uma obra literária — algo de que não estou minimamente certo –, essa classificação não poderia ser nunca uma classificação relativa, isto é, nunca se poderia dizer que A é melhor que B, simplesmente pelo facto de o objecto produzido por A e o objecto produzido por B serem sempre diferentes — a não ser, é claro, que se trate de uma questão de plágio –; em terceiro lugar, creio, com todas as fibras do meu ser, que o único tipo de classificação possível de uma obra literária terá de ser, obrigatoriamente, qualitativa e subjectiva, isto é, A é bom para mim, coincidindo e reduzindo, portanto, essa classificação à experiência individual de leitura; em quarto e último lugar, ainda que admitindo o incompreensível esforço classificativo de Nabokov, seria impensável, para mim, atribuir a Dostoievski uma nota negativa. É certo que Dostoievski de Noites Brancas não é o mesmo de Crime e Castigo; mas também o Tolstoi de Anna Karénina não será exactamente o mesmo de Os Cossacos (e fecho aqui a discussão que inadvertidamente abri sobre essa controversa categoria de autor), mas não creio que Dostoievski fique a dever assim tanto a Tolstoi, ao contrário daquilo que Nabokov parece afirmar. Na verdade, neste momento em que terminei a leitura de Anna Karénina não consigo decidir qual dos dois tem, para mim, maior interesse: Crime e Castigo ou Anna Karénina?
2. Em nota de rodapé, Nabokov discute brevemente os problemas de tradução do apelido Karénina para inglês; em russo, um apelido que designe uma mulher adquire um ‘a’ no final, assim a esposa de Karénin é Karénina, a de Lévin é Lévina, o que em inglês, segundo o autor, não deve acontecer: para Nabokov, Karénina deve ser «Mrs. Karénin». De novo discordo de Nabokov; é essencial para o romance a pertença da mulher ao seu esposo — assim, Karénina é a esposa de Karénin algo que o título «Mrs.» não implica necessariamente; além disso — e neste momento recorro apenas à tradução portuguesa — em Anna Karénina são raras as ocasiões em que se usam títulos para os personagens: Vronski é quase sempre Vronski e apenas raramente Conde Vronski; assim, considero que acrescentar «Mrs.» ao nome de Anna deturparia a forma de tratamento preferida por Tolstoi.
3. Não posso deixar de concordar com Nabokov quando diz que Anna Karénina é profundamente diferente de Madame Bouvary, ao contrário daquilo que a crítica e os leitores menos exigentes acreditam: Anna não foi castigada por ter cometido adultério, mas por outra razão; não posso, contudo, concordar com a razão apontada por Nabokov: não creio que a relação de Anna com Vronski se possa resumir a uma relação carnal, mesmo que por oposição à relação de Lévin com Kiti; há muito mais a dizer sobre a complicada ligação de Anna e Vronski.
4. Como ler depois de Anna Karénina?
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20 de Junho de 2010
Além do seu nome próprio de José, o Sr. José também tem apelidos, dos mais correntes, sem extravagâncias onomásticas, um do lado do pai, outro do lado da mãe, segundo o normal, legitimamente transmitidos, como poderíamos comprovar no registo de nascimento existente na Conservatória se a substância do caso justificasse o interesse e se o resultado da averiguação pagasse o trabalho de confirmar o que já se sabe. No entanto, por algum desconhecido motivo, se é que não decorre simplesmente da insignificância da personagem, quando ao Sr. José se lhe pergunta como se chama, ou quando as circunstâncias lhe exigem que se apresente, Sou Fulano de Tal, nunca lhe serviu de nada pronunciar o nome completo, uma vez que os interlocutores só retêm na memória a primeira palavra dele, José, a que depois virão a acrescentar, ou não, dependendo do grau de confiança ou de cerimónia, a cortesia ou a familiaridade do tratamento.
SARAMAGO, José
1997 Todos os Nomes; ed. ut.: Lisboa, Planeta de Agostini, 2000, p.19.
Adeus Sr. José. Sinto já a tua falta.
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20 de Junho de 2010
Poesia Maneirista, AA. VV.
Os Passos em Volta, Herberto Helder.
Anna Karénina, Lev Tolstoi.
Concepts of Criticism, René Wellek.
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13 de Junho de 2010
Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido actor sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.
Pessoa, Fernando / Soares, Bernardo
2006 Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith [Obra Essencial de Fernando Pessoa], p. 233.
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10 de Junho de 2010
Canção VII
Manda-me Amor que cante docemente
o que ele já em minh’alma tem impresso
com pressuposto de desabafar-me;
e porque com meu mal seja contente,
diz que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
tomara eu só de Amor por interesse,
se não se arrependesse
co a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de qu’escrevo;
e se é mais o que canto que o qu’entendo,
invoco o lindo aspeto,
que pode mais que Amor em meu defeito.
Sem conhecer Amor viver soía,
seu arco e seus enganos desprezando,
quando vivendo deles me mantinha.
O Amor enganoso, que fingia
mil vontades alheias enganando,
me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Febo, e Progne vinha;
o corno de Aquelôo Flora entornava,
quando o Amor soltava
os fios d’ouro, as tranças encrespadas,
ao doce vento esquivas,
dos olhos rutilando chamas
vivas, e as rosas entre a nove semeadas,
co riso tão galante
que um peito desfizera de diamante.
Um não sei quê, suave, respirando,
causava um admirado e novo espanto,
que as cousas insensíveis o sentiam.
E as gárrulas aves levantando
vozes desordenadas em seu canto,
como em meu desejo se entendiam.
As fontes cristalinas não corriam,
inflamadas na linda vista pura;
florescia a verdura que, andando,
cos divinos pés tocava;
os ramos se abaixavam,
tendo inveja das ervas que pisavam
(ou porque tudo ante ela se abaixava).
Não houve coisa, enfim,
que não pasmasse dela, e eu de mim.
Porque quando vi dar entendimento
às cousas que o não tinham, o temor
me fez cuidar que efeito em mim faria.
Conheci-me não ter conhecimento;
e nisto só o tive, porque Amor
mo deixou, porque visse o que podia.
Tanta vingança Amor de mim queria
que mudava a humana natureza:
os montes e a dureza
deles, em mim, por troca, traspassava.
O que gentil partido!
Trocar o ser do monte sem sentido,
pelo que num juízo humano estava!
Olhai que doce engano:
tirar comum proveito de meu dano!
Assim que, indo perdendo o sentimento
a parte racional, me entristecia
vê-la a um apetite sometida;
mas dentro n’alma o fim do pensamento
por tão sublime causa me dizia
que era razão ser vencida.
Assim que, quando a via ser perdida,
a mesma perdição a restaurava;
e em mansa paz estava
cada um com seu contrário num sujeito.
Ó grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
a causa donde vem tamanho efeito
que faz num coração
que venha o apetite a ser razão?
Aqui senti de Amor a mor fineza,
como foi ver sentir o insensível,
e o ver a mim de mim mesmo perder-me;
enfim, senti negar-se a natureza;
por onde cri que tudo era possível
aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Depois que já senti desfalecer-me,
em lugar do sentido que perdia,
não sei que m’escrevia
dentro n’alma co as letras da memória,
o mais deste processo
co claro gesto juntamente impresso
que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
eu não a escrevo, d’alma a trasladei.
Canção, se quem te ler
não crer dos olhos lindos o que dizes,
pelo que em si se esconde,
os sentidos humanos, lhe responde,
não podem dos divinos ser juizes,
[sendo um pensamento
que a falta supra a fé do entendimento].
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6 de Junho de 2010

Saldo:
Os Lusíadas, Luiz de Camões, ed. António José Saraiva, Figueirinhas. 33€ (preço original 110€)
Decameron, Boccaccio, Círculo de Leitores. 5€ (usado)
Sobre Literatura e Cultura Britânicas, Jorge de Sena, Relógio d’Água, 5€ (manuseado, preço original 17.50€)
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19 de Maio de 2010
O Francisco Saraiva Fino desafiou-me aqui a pensar e escrever o fenómeno crítico. Não resisti a aceitar o desafio. FSF tem vindo a publicar as premissas (1;2;3;4) que eu, a tempo, questionarei, revolverei, explorarei, com as quais concordarei ou discordarei e que servirão de catalisador para o meu (?) pensamento. Deste diálogo (a três quatro dez vinte, comigo, FSF e com todos os que pela sua voz se pronunciarem) espero — esperamos, tenho a certeza — que resulte uma reflexão séria, coerente e relevante. Agradeço-lhe, profundamente, o desafio (pesado, pesadíssimo) que colocou nos meus ombros, farei o meu melhor para corresponder às expectativas — ainda que sinta que este exercício me fará reflectir mais a minha própria posição do que analisar a dos outros.
A primeira parte seguir-se-á nos próximos dias.
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19 de Maio de 2010
Terminei o grandioso livro. Sem dúvida, assistimos ao desflorar de Jorge. O que fica imperceptível é qual a transformação que nele terá tido maior impacto: a súbita consciência do mundo social (guerra espanhola e a asfixia da ditadura), o encontrar do amor transcendente (com Mercedes), a ligação profunda e confusa desenvolvida com outro ser humano (Luís), a consciência da influência de cada um na vida do outro — ainda que cada um seja, simultaneamente, o único responsável por si próprio (Rodrigues), o desflorar da veia poética; enfim, numa palavra, Sinais de Fogo é a consciencialização de que no man is an island. E, ao mesmo tempo, não é nada disso e é muito mais que isso.
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19 de Maio de 2010
Sinais de fogo, os homens se despedem,
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância,
um breve instante, gestos e palavras,
ansiosas brasas que se apagam logo.
SENA, Jorge de
1979 Sinais de Fogo; ed. ut.: Porto, Público, p. 462.
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19 de Maio de 2010
Mas, entre mim e a inocência de estar com os outros, haveria, daí em diante, não um muro de palavras sentimentais e consoladoras como da poesia de que eu não gostava, mas um vácuo frígido, feito da eventualidade de elas criarem um sentido e uma relação em tudo, se eu deixasse que elas aparecessem. Era como se uma última virgindade que só alguns por acaso perdem me tivesse sido tirada, e eu ficasse isolado, contraditoriamente e irremediavelmente, sujo de essencial pureza, de tudo e de todos.
SENA, Jorge de
1979 Sinais de Fogo; ed. ut.: Porto, Público, p. 519.
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16 de Maio de 2010
Brandamente, [o Rodrigues] empurrou-me um pouco pelo corredor adiante, e agachou-se diante de mim. Fechando os olhos, senti-me coberto de suor frio. Ouvi-lhe a voz: — Com que então foi com isto que a fizeste tua? — Não respondi, e ainda que quisesse não poderia. Esperei. Não aconteceu nada. E foi com alívio que ouvi a voz dele junto da minha cara, e abri os olhos: — Tens isso sujo de merda. Lava-te primeiro.
SENA, Jorge de
1979 Sinais de Fogo; ed. ut.: Porto, Público, p. 429.
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11 de Maio de 2010
Aviso à navegação (isto é, quem não leu e não conhece o enredo de Sinais de Fogo): sempre que falo em Jorge, não me refiro a Jorge de Sena, autor, mas sim a Jorge, narrador autodiegético.
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11 de Maio de 2010
Ainda não me referi à Guerra Civil Espanhola. Neste momento, interessa-me só apontar: Jorge é o homem que vai ficar em terra. Não sei que ilação tirar disto, para já.
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11 de Maio de 2010
Ainda sobre o primeiro encontro sexual de Mercedes e Jorge — o entusiasmo do narrador deve-se:
a) Hipótese ultra-romântica: ao amor inesgotável que unia os amantes;
b) Hipótese ultra-cínica: a Mercedes ser a noiva de outro homem.
Hipótese mais provável: somewhere in the middle.
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10 de Maio de 2010
E, mesmo que soubesse, eu podia sabê-lo, como de tudo, de três maneiras: por me contarem, por eu ter assistido, ou por eu ter participado. Quando não tivesse participado em alguma coisa, mas ouvido ou visto, o que me dissessem, ou o que fizessem diante de mim, seria exactamente a verdade?
SENA, Jorge de
1979 Sinais de Fogo; ed. ut.: Porto, Público, 2003, p. 235-236.
A subjectividade do real é aqui perfeitamente problematizada por Jorge: se não fiz, como posso acreditar naquilo que vi ou ouvi? Os sentidos enganam. Falta-lhe ainda perceber que o real também foge àquilo que se faz: exemplo disso é a orgia de uma das noites anteriores que é sempre recordada como se tivesse sido vivida por outro, esfumada e irreal. O que é o real?
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9 de Maio de 2010
E, de repente, senti que, para além da identidade em que todos se diferençavam uns dos outros, uma coisa estava acontecendo, acontecera naqueles poucos dias, na acumulação de coisas que haviam desabado sobre mim: tudo desabava numa desordem sem fronteiras nítidas e passava a ter o valor que cada um lhe desse. Isto, porém, era ainda um segredo de cada um.
SENA, Jorge de
1979 Sinais de Fogo; ed. ut.: Porto, Público, 2003, p. 189.
Novo sinal de amadurecimento intelectual de Jorge: percebe, finalmente, que não há fronteiras no mundo, que não há «incólumes» e «marcados», mas que cada um é a sua própria desordem.
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